Comentários de Pedro Calmon ao Regimento de Almeirim, entregue a Thomé de Sousa por Dom João III (publicado no livro História da Fundação da Bahia, em 1949).
O Regimento de Thomé de Sousa é a Constituição prévia do novo Estado. A sua antecipada organização. A um tempo a instituição do governo e a sua limitação: "ordem e maneira" de justiça e "bem das partes", isto é, o esquema do poder público. Os seus desígnios solenes eram, com o povoamento da terra, a exaltação da fé e o proveito destes Reinos e Senhorios: seja, o serviço de deus e a utilidade da coroa. Para os realizar trataria o governador de levantar, antes de mais nada, "povoação grande e forte" (1) onde se acastelasse com a expedição ( e o regimento se alonga em recomendações de ares saudáveis, sítio defensável, muros à volta, fossem de taipa ou pedra, roças para o seu mantimento); reduziria à paz os indígenas, não deixaria sem castigos felonia dos rebeldes, e, em seguida, visitaria as capitanias, a dar-lhes ordem e auxílio. Eram as providências de caráter imediato, como instruções de serviço. O que mais importava no Regimento era o traço largo e sereno das suas normas. Criava uma forma de convivência, um modo equitativo de aproveitamento da terra, a dignidade civil desse povo improvisado, estendendo sobre a sua inexperiência o manto das antigas liberdades. O ouvidor, encarregado da justiça, e os juízes das povoações, aplicariam as Ordenações do Reino ("conforme as minhas ordenações", é a exigência do parágrafo 32, sem esquecer as do 4º livro, insistia o parágrafo 9) (2) cuja proteção envolveria, indiferentemente, portugueses da Europa e da América. Respeitadas as suas disposições, cada qual era proprietário, pelo sistema de sesmarias ( "que boamente e segundo sua possibilidade vos parecer que poderá aproveitar"), obrigados, porem, às que fizessem engenho de açúcar, a ter "torre ou casa forte" em que se defendessem. Engenho, entretanto, era empresa rica: enquanto que podiam os mais lavrar o solo, plantando os canaviais que nele dariam bem. Parecia natural, pois que levassem a colheita às moendas para a fabricação do açúcar de "partido" ou parceria, regulado pelo governador "de maneira que fique o partido favorável aos lavradores, para eles com melhor vontade aproveitarem as terras". Os brancos não invadiriam as aldeias dos índios nem iriam "terra firme adentro" sem sua licença; limitar-se-iam a negociar com eles nas feiras semanais que haveria em cada povoação; ficando os preços "certos e honestos", a critério dos capitães e oficiais que honradamente os assentariam. O governador veria pelas capitanias com o seu ouvidor, oficiais da fazenda nelas existentes e homens principais da terra "a maneira que se terá na governança", os recursos militares, a fortificação, a divisão dos baldios em sesmarias, tudo o que fosse necessário à boa ordem, ― menos em Pernambuco, onde Duarte Coelho não quis que ele fosse (3). Não esqueceria a catequese do gentio, menos a prevenção contra os corsários, e a entrada do sertão, a averiguar o que houvesse; impediria que os colonos se transportassem de uns para outros lugares da costa;faria que tivessem as armas precisas para a defesa comum; imporia pena de morte aos salteadores do litoral, que costumavam antes dar nos acampamentos, escravizando e trucidando os catecúmenos; e a sua autoridade vasta se empregaria um pouco por toda a parte, em vigiar, conter, corrigir, comandar ― como se fora o próprio soberano na sua função de pai, de chefe, de magistrado.
Apesar disto, a justiça (confiada por hora a um ouvidor geral) e a fazenda com o seu provedor-mor, não entravam na sua jurisdição, dela isentadas por razão suprema. Era o que acontecia no Reino. O tesouro real e os tribunais não se confundiam com o poder robusto e transitório, dos capitães metidos nos governos territoriais, escapavam até ao arbítrio do monarca, submisso à sua burocracia e à sua magistratura. Dividiam-se, com alguma virtude e muita malícia, as junções. Thomé de Sousa não queria outra coisa. Ocupado com a tarefa quase prodigiosa de erguer a cidade, de policiar o continente, de criar o estado, pastava-lhe aquele patriarcado militar, de espada à cinta e estandarte ao vento ...
Pero de Góes, cuja capitania da Paraíba do Sul se malograra, vinha como capitão-mor do mar, encarregado de comandar a guerra aos corsários, onde quer que se apresentassem na costa imensa.
A justiça teria um ouvidor geral, o seu escrivão privativo e os seus meirinhos.
Os excessivos poderes dados ao ouvidor presumiam juiz reto e lúcido, ou seria o árbitro das vidas e propriedades da colônia, sem que o governador lhe perturbasse a jurisdição imensa. Realmente, conhecia de todas as causas crimes por ação nova, e a sua alçada abrangia a condenação à morte, irrecorrível se por isso estivesse o governador, que em caso contrário, não parecendo bem a pena, determinaria subissem os autos com o preso, à decisão final da corregedoria da corte. Mas lhe era facultado degredar as pessoas de mór qualidade por prazo até cinco anos; e, no civel, julgava até o valor de 60$000 (4).
A sua principal atribuição consistia em "correger" as capitanias, para dar-lhes ordem e forma de juízo, suspendendo os ouvidores que se desmandassem, atendendo às queixas, substituindo os oficiais indignos, apresentando aqui e acolá a severidade da lei, cujos segredos só ele penetraria devidamente.
Foi esse ouvidor geral ― nomeado em 17 de dezembro de 1848 ― o desembargador Pero Borges (5), que acabava de ser corregedor no Algarve, ainda jovem (6), mas esclarecido, desassombrado e fidalgo. Nascido na corte ― filho do aio da infanta D. Beatriz, Gonçalo Pedroso de Brito ―, fizera os estudos em Coimbra, prestara bons serviços a el-rei na sua vila de Lagos, e, pela carreira judiciária, que lhe absorveu a vida, se percebe que a fibra de magistrado nele se retemperava com a honestidade e a perseverança, dos que envelhecem no ofício. Ficaria no Brasil quatorze anos de heroicos trabalhos, e voltando para o Reino exerceria sucessivamente o juizado de Latões, a corregedoria de Port'Alegre, a provedoria de Vizeu, último cargo que lhe conhecemos.
Trazia escravidão privativo, Brás Fernandes, e meirinho Manuel Gonçalves ...
Também de 17 de dezembro de 1548 foram os dois regimentos baixados para o provedor-mor da fazenda, Antonio Cardoso de Barros (nomeado afinal em 7 de janeiro seguinte).
Admira nesses documentos um vigoroso traço de ordem.
Antes de batida a primeira estaca para a construção da cidade, aí estava a sua organização administrativa. Previa-se tudo, com o senso do rendimento ou de método em que entravam juntos cinquenta anos de experiência da Ásia e o bom governo comarcão. Sem nada ficar ao acaso.
O Palácio Rio Branco visto do Paço Municipal, do século 17, ambos na histórica Praça Thomé de Sousa, em Salvador. O local foi o centro político e administrativo do Brasil por mais de duzentos anos, desde 1549.
Primeira Constituição do Brasil - 1548
Notas de Pedro Calmon:
(1) A expressão, "povoação grande e forte", presumia outra, "cidade", que de fato, ia Thomé de Sousa fundar, embora não apareça esta palavra senão nos assentamentos feitos na Bahia de Todos os Santos, a partir de 1 de abril de 1549.
(2) Vigoravam as Ordenações manuelinas (publicadas em 11 de março de 1521, segundo a compilação de Ruy Bôtto, Ruy da Grã e João Cotrim).
(3) Carta a el-rei, de 14 de abril de 1549, in Hist. Col. Port., III 318.
(4) É da carta de Ilhéus, do Dr. Pero Borges, de 1550, que se sabem serem estas as atribuições do Regimento que recebeu, e a que se referia a sua carta de nomeação. Perdeu-se porém este Regimento, sendo estranho que, além de não aparecer nos livros velhos da Chancelaria existentes na Torre do Tombo (exaustivamente o procuramos), não figure nas coletâneas onde estão os do governador, do provedor, etc. É licito, todavia, calcular, que os poderes constantes do mesmo Regimento seriam, com as alterações suscitadas pela presença do tribunal da Relação, os dos Ouvidores gerais da Bahia (In sistema dos Regimentos ou Coleção dos Regimentos Reais ns. 38-48, voI. IV, p. 311, Lisboa 1791).
(5) Carta de nomeação por três anos, com 200$000 de ordenado anual, 17 de janeiro de 1549, Doe. Htst., XXXV, 23-6. Falta a esta transcrição o suplemento, que se acha na Chancelaria de D. João III, ms. na Torre do Tombo, L. 7, fis. 110 e 111 v.: "Eu El-rei faço saber a quantos este meu alvará virem que eu hei por bem e me praz que falecendo o Doutor Pero Borges nas terras do Brasil onde o ora envio por ouvidor geral ou na viagem de Ida ou vinda de fazer mercê a Simôa da Costa sua mulher de vinte mil réis de tença cada ano em sua vida havendo respeito a outros tantos que por falecimento do dito Pero Borges onde vagar este 15 mil réis que tinha com o habito e 5 mil réis mais que ora houve por bem por uma vida provisão de lhe acrescentar e para sua guarda e minha lembrança lhe mandei dar este meu alvará ... " Em Almeirim, 17 de Janeiro de 1549.
(6) Reservados, cóta 1075, da Biblioteca Nacional de Lisboa: Pedro Borges, Dr: "foi f.º de Glo Pedroso de Brito ayo da Inf. D. Beatriz casou em Saboya, e de Sua m.er Guiomar Nunes Botelho f.ª de Nuno GIz. Botelho o 1.º homem que nasceu na ilha de S. Miguel e de sua m.er C. na Roíz, m.er nobre, e f.ª de Nunes em Va. Franca da Ilha. Foi irmão de G.ar Nunes Botelho, Jorge Nunes Botelho que, tirou brazão de armas em 1533. Como a viagem da infanta para Saboia foi em 1521 (Damião de Góes, crónica, 4.ª parte, cap. LXX), é provável que o aio, Gonçalo Pedroso de Brito, estivesse ainda, por esse tempo, na flor da Idade, podendo ter nascido Pero Borges em 1519, o que lhe daria trinta anos ao vir para o Brasil, e 68 ao receber a provedoria de Vizeu. Foi juiz de fóra de Lafões em 1567, corregedor de PortAlegre e provedor de Vizeu por carta de alvará de 4 de Dezembro de 1587 (Bibl. Nac. de Lisboa, Memorial de Ministros, Reservados, fls. 303, cótas 1078 e 1079, cm. pela sra. Bertha Leite).
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