Os Falsos Descobrimentos do Brasil
Comparação entre o trecho norte do Planisfério de Cantino (acima) e o provável trecho correspondente da América do Sul, embaixo (clique na imagem para ampliar).
O trecho usualmente considerado como sendo do Brasil seria, na verdade, a costa do Suriname e da Guyana Francesa, com a Linha de Tordesilhas passando logo após a foz do rio Maroni. A região é de baixa altitude, com vegetação densa, pantanosa, altamente inundável e com morfologia dinâmica. Não é coincidência que guyana é um nome indígena que significa "terra de muita água".
As pequenas ilhas vermelhas indicadas no Cantino, no provável litoral do Suriname, estariam localizadas hoje numa região com vários lagos. A dinâmica morfológica explicaria a maior concavidade da região, no Cantino. A região das ilhas, transformada em região de lagos, suavizaria o perfil costeiro. Um estudo da Universidade Católica de Leuven, demonstra que a "massa costeira" do Suriname move-se em direção a oeste, o que reforça a teoria de que a região das "ilhas vermelhas" teria sido transformada numa região de lagos, durante os últimos cinco séculos.
O Rio Grande do Cantino e seu "mar de água doce" seria provavelmente o Rio Suriname, em cuja foz localiza-se Paramaribo. As características da região, com seus manguezais, inundações e dinâmica, poderiam explicar a referência.
Observe, também que os acidentes geográficos do Cantino são um tanto exagerados.
Não é impossível que algum europeu tenha chegado à Terra de Santa Cruz antes de Cabral, mas os fatos, as evidências e o contexto histórico unem-se contra essa hipótese. Obviamente, já tinha muita gente aqui quando Cabral chegou, mas sem indícios de que tenham vindo da Europa.
Todas as versões sobre possíveis descobrimentos por europeus, antes de Cabral, já foram exaustivamente estudadas e descartadas há quase cem anos. Essa bibliografia é conhecida no meio acadêmico, como os trabalhos de Duarte Leite, Clemente Brandenburger, Teixeira Mota e outros. Desde então, não surgiu qualquer fato novo relevante sobre o assunto, apenas recorrentes mal entendidos.
Os autores que defendem, por exemplo, que os navegadores Vicente Pinzón, Diego de Lepe ou Duarte Pacheco chegaram antes de Cabral, citam, em geral, fontes secundárias. Raramente citam os renomados autores portugueses, que se debruçaram profundamente em fontes primárias para refutar tais hipóteses. Grande parte desse trabalho foi publicada na monumental História da Colonização Portuguesa do Brasil (três volumes, 1921 e 1924). O historiador alemão Clemente Brandenburger, por exemplo, demonstrou impaciência com autores que defendiam o descobrimento por Pinzón, em seu artigo publicado na revista do IHGB (vol. 175, 1941), mas suas conclusões, em contrário, não são citadas, nem mesmo para explicar porque não concordam com elas.
Em grande parte, a polêmica surge com a inadequada interpretação do Planisfério de Cantino, o primeiro mapa do Brasil conhecido. Principalmente devido à referência a um Rio Grande como um mar de água doce, erroneamente entendido como sendo o Amazonas. A costa noroeste da América do Sul (ao lado) foi levantada pelos espanhóis nos últimos anos do século 15 e incluiu a participação de Américo Vespúcio. Assim, alguns autores atribuem erradamente a descoberta do Rio Amazonas ao navegador florentino. Por essas referências, a Linha de Tordesilhas do Cantino poderia estar no Maranhão e a Guyana Francesa iria parar no Ceará, atendendo aos defensores de que o espanhol Vicente Pinzón descobriu o Brasil primeiro.
Quando se considera o exagero na escala de cerca de 50%, que existiu para esses levantamentos da costa norte da América do Sul, percebe-se prontamente que a região a oeste da linha de Tordesilhas, no Cantino, refere-se ao um trecho do litoral da Colômbia até a Guyana Francesa (veja comparação ao lado). Na época, a determinação das distâncias leste-oeste (longitudes) eram um problema imensamente maior que as correspondentes norte-sul (latitudes).
Outro erro comum é o mal entendimento do Planisfério de Juan de la Cosa, de 1500/?, que inicialmente referia-se à costa oriental da Ásia, e não ao Brasil. Foi editado ao longo dos primeiros anos do século 16, com as novas descobertas (veja quadro vermelho abaixo).
É bastante improvável que os navegadores espanhóis tenham violado o acordo de Tordesilhas. Portugal era claramente a nação mais poderosa do Planeta no final do século 15. No início do século 16, já tinha domínios em quatro continentes. Um feito inédito na História, até então. Portugal quase entrou em guerra com a Espanha por causa do desembarque de Colombo nas novas terras, que seriam portuguesas pelo acordo de Alcáçovas. A Espanha teve que fazer concessões para conseguir o Tratado de Tordesilhas, em 1494.
O Planisfério de Cantino demonstra o respeito dos espanhóis ao Tratado. Note que, após a Linha de Demarcação, o litoral segue direto até os levantamentos portugueses na costa leste do Brasil. O Cantino claramente não mostra a região do Cabo Orange, onde começa o litoral norte do Brasil, pois a forte inflexão desse ponto, para o sul, não é indicada no mapa.
Embora o historiador português Duarte Leite tenha indicado o Cabo Orange como o possível local de desembarque do navegador espanhol Vicente Pinzón, em janeiro de 1500, é improvável que tenha sido mesmo o caso. Leite não devia conhecer bem a geografia do Cabo Orange, que, apesar de ecologicamente belo, não é atraente ao assentamento humano. É alagadiço e não existe um porto natural no local, razão pela qual, a região ficou praticamente desabitada nos cinco séculos seguintes e, hoje, é um parque ambiental. O trecho da costa da América do Sul, que se estende desde a foz do Amazonas até a foz do Orinoco, caracteriza-se por mangues e bancos de lama.
Pinzón poderia ter desembarcado em algum trecho do litoral do Amapá, que era espanhol, segundo Tordesilhas, ou em algum ponto mais a oeste.
O Rio Amazonas foi descoberto pelos europeus, em 1541, por outro navegador espanhol: Francisco de Orellana. A ideia de que Vespúcio descobriu o Amazonas vem provavelmente do próprio Cantino, que registra um Rio Grande com o texto: todo este mar é de água doce. Mas tudo indica que se trata do Rio Suriname, na antiga Guyana Holandesa. Não é coincidência que guyana é um nome indígena que significa "terra de muita água".
Em 1929, uma carta de Clemente Brandenburger, demonstrou, com base nas capitulações celebradas entre a Coroa de Castella e Pinzón, em 5 de setembro de 1501, e outros documentos da época, que as terras descobertas por Pinzón estariam entre a foz do Rio Orinoco até algum ponto nas Guyanas.
Nenhum outro pesquisador, entretanto, se deteve tão profundamente no assunto quanto o professor Duarte Leite, que além de historiador era também astrônomo e geodesista. Leite analisou detalhadamente os registros de navegação de todos os pretensos descobridores do Brasil, bem como os documentos históricos da época. Esses trabalhos foram publicados nos livros: História da Colonização Portuguesa do Brasil (Porto, 1921/4), Os Falsos Precursores de Álvares Cabral (Lisboa, 1941?) e História dos Descobrimentos (dois volumes, 1958, Lisboa). Essas obras mostram fartas evidências de que Cabral foi o primeiro europeu a chegar no Brasil.
Até 1501, quando os portugueses realizaram a primeira expedição exploradora, em que também participou Américo Vespúcio, pensava-se que as terras em que Colombo desembarcou fossem parte das Índias. Assim, acreditava-se que poderiam existiam ilhas ao sul dessas terras, mas seriam ilhas da costa leste da Ásia. Esse foi provavelmente o motivo porque o Brasil foi chamado de Ilha de Vera Cruz, em 1500.
Em seu mapa de 1507, Johannes Ruysch registrou que o Mundo Novo era a Terra de Santa Cruz e ele ainda acreditava que o Japão estava nas Antilhas.
O entendimento de que a América era parte das Índias continuou por muitos anos, após o desembarque de Colombo nas Antilhas. O conceito de Novo Mundo demorou a ser assimilado, até por muitos acadêmicos. Ao chegar na Bahia, em 1549, Manoel da Nóbrega deparou com a lenda, entre os índios, de que São Tomé esteve no Brasil, deixada possivelmente pelos primeiros missionários franciscanos, antes de 1515. São Tomé pregou na Índia e o Brasil era entendido como parte das Índias.
A Carta de Caminha é a prova de que não se conhecia o Brasil antes da chegada de Cabral. O escrivão português deixou claro que as terras eram desconhecidas. Sua carta era um documento secreto, para ser lida apenas pelo rei e seus auxiliares. Dom Manuel comunicou o Descobrimento aos Reis Católicos da Espanha apenas em 29 de julho de 1501, por carta. A razão da demora é que D. Manuel preferiu aguardar o retorno de Cabral a Lisboa e ouvir a versão do próprio navegador, muito sensato.
Não foi aqui. A Pedra Furada no litoral do Ceará, próximo a Jericoacoara.
Essa bela formação rochosa tem sido frequentemente referida como o bico de cisne mergulhando no oceano, referido por Pinzón e citado por Varnhagen. Entretanto, qualquer garoto de dez anos, ao referir-se a essa bela formação rochosa, não deixaria de observar o incomum furo na pedra, em primeiro lugar. Além disso, formações rochosas que lembrem bicos de cisnes são relativamente comuns. O furo na pedra é mais uma evidência de que o Rostro Hermoso de Pinzón não é aqui.
O Planisfério de Juan de la Cosa, de 1500, que não era só de 1500
O Planisfério do grande cartógrafo espanhol é outra fonte de muitos mal-entendidos e confundiu historiadores de renome do passado.
Ele foi confeccionado inicialmente em 1500 e registrou os levantamentos da viagem de Alonso de Ojeda, em que participou Américo Vespúcio. Erroneamente dá a entender que houve registros do litoral norte do Brasil.
O historiador português Duarte Leite, em sua História dos Descobrimentos (1958), demonstra que várias feições do Planisfério foram adicionadas após 1500.
Leite também demonstra que parte do litoral norte da América do Sul foi complementado com a geografia que se entendia da Ásia. Não era o Brasil. Na época da confecção deste Planisfério, os espanhóis ainda acreditavam que essas terras estavam no leste da Ásia.
No início do século 16, alguns cartógrafos confundiam o Brasil com a Austrália, negando a existência de um Novo Mundo.
A parte do levantamento real da expedição de Ojeda, seria aquela observada no Cantino, de 1502.
Os erros nas latitudes do Cantino. Observe como as ilhas do Caribe estão próximas da Linha de Tordesilhas do Planisfério de Cantino (fragmento à esquerda). No mapa atual (direita), o local aqui eleito para a mesma linha, após o rio Moroni, passaria apenas um pouco mais longe. Mas note, também, que toda a costa sul-americana, no Cantino, está um pouco deslocada para a esquerda.
As distâncias norte-sul eram determinadas com certa facilidade na época, com base nos astros, pois não há o efeito da rotação da Terra. Nas distâncias na direção leste-oeste, entretanto, os erros podiam ser bem grandes e certamente o foram no Cantino.
Entenda o Problema das Longitudes►
Por Jonildo Bacelar
Projeção de Mollweide
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Christian Knepper